Dia a Dia

Um dia é para se cumprir
mas nem tanto.
Não me apresso cego e surdo
no dia a dia atravessado.

Uma posição disputa a maioria
como se cada dia fosse
uma corrida.

Eu não!
Vou como devo em tempo todo.

Na leitaria, o pequeno almoço
mastigo-o, mas outros não.

- "A Fonte Luminosa está às escuras...
a Ponte sobre o Tejo (e quantos nomes...)
não tem iluminação. Ao que nós chegamos!..."
De boca cheia.

Mastigo em silêncio e ausento-me:
Vou até onde as crianças fazem cópias
à luz de candeias seculares;
atravessam as ribeiras a pés nús
e bebem água nos córregos;
deliram com o arco-íris
e ainda não viram o mar.

Ali na avenida
um carro acelera, passa e pára
e eu após ao sinal do tempo.
Na traseira do carro a poeira
e na poeira traços que se adivinham de criança
e o nome mãe.
Traços de colmatar os gritos de tantos cartazes,
traços que se gravam em mim.

A noite fecha-me na colectividade
a beber ar provinciano.
Com histórias e canções da terra
às vezes repetidas e sempre queridas.
Joga-se e fala-se alto.

- "A pensar morreu..." - uma palmada no ombro
de mão amiga.
Mas penso.
Penso nos deslocados do meu país.
Não me apresso a iludir-me
no atravessar de cada dia.
Vou como devo em tempo todo.

josé do fetal
Lisboa-Jan./1977