A origem das Ribeiras
Há muitos anos atrás, até onde puder recuar a memória do povo português, um belo e jovem cavaleiro estava de passagem por estes lados (quiçá até seria S. Jorge, padroeiro da terra). Ao atravessar a serra, foi visto por diversas moiras que por ele se deixaram seduzir e enamorar. Mas o encantador cavaleiro teve de regressar às suas funções, deixando para trás uma verdadeira legião de fãs, seus amores proibidos.
As moiras foram castigadas e separadas. Cada uma ficaria em sua encosta recôndita e jamais voltariam a ver vivalma, muito menos o seu amado. Iradas e desprezadas, transformaram todo o ouro que havia no interior da montanha em pedras negras -volfrâmio, e depois, começaram a chorar copiosamente pelas suas tristes sinas, até que as suas lágrimas formaram ribeiros que iriam correr a face da terra à procura do amado. Como o Amor que todas nutriam era pelo mesmo homem, as lágrimas juntaram-se no fundo da aldeia para assim percorrerem as entranhas da terra buscando consolo e esperança. (Vanda)
Cobra num rastro da vida
Por Adelaide Ramos Vilela
Alice adormecia e acordava, frequentemente a altas horas da noite,
enquanto sua irmãzinha Duliça dormia ao lado dela um repousante
soninho de tranquilidade. Mas nem sempre; porque, às vezes ela despertava, e a lua, filtrando os seus raios de luz pelos vidros da janela, advertiam-na de que algo perturbava a sua irmã! Ela ficava
desagradavelmente indisposta pelo esforço de refazer o sono perdido, mas não se dava ao cuidado de perguntar por que é que Alice gemia. Talvez sonhasse com o namorado... imaginava Duliça, porque a sabia namoradeira, e também porque necessitava de descansar para crescer, e supunha-se sorridente e aplicada para entrar na escola pela manhãzinha...
Adormecendo não se deu conta do perigo que a irmã mais velha corria. Alice foi vítima de um ataque de meningite e precisava de cuidados médicos imediatos. O caso dela tornou-se muito grave... Já uma gotinha de sangue corria da boca e do nariz de Alice que entrava agora num coma profundo.
A mãe não conseguia “pregar” olho essa noite, e como por instinto, decidiu ir ao quarto dos rapazes. Deu um beijo terno aos seus quatro filhos e aconchegou-lhes a roupa da cama com aquele carinho de mãe amada. Pensando nas filhas com o mesmo amor disse ternamente: – Já vou aí minha filhas é só encostar a porta devagarinho para os manos não se assustarem. Mal deu um passo fora do quarto logo se sobressalta ao ouvir soluçar a sua Dulicinha. Corre para quarto de suas filhas sem se lembrar de ascender a luz. Tropeça e cai sobre o corpo inerte de sua filha mais velha.
- Mãe, mãezinha eu matei a minha irmã; eu deixei morrer a nossa Alice. Alice pediu-me ajuda e eu pensei que ela estava a sonhar com o Eduarto. A mãe com o coração em farrapos dá tantos gritos naquela casa que a corda os filhos varões e toda a vizinhança. Ao destapar a filha reparou que o sangue lhe saída da boca e do nariz como fonte em bica. Todo a aldeia acordou. Eram três horas da manhã. Os sinos tocaram a rebate. As pessoas gritavam – Tragam uma cadeira. Chamem o ti António da carroça. A Alice do ti Zé das chedas está a morrer, vai-se escoar de sangue.
Logo ali apareceram dois rapazes valentes com cento e vinte quilos, mais ou menos, cada um, oferecendo-se para carregar Alice às costas até à estrada principal. Era um bico-de-obra pois a dita estrada ficava a um km da casa da doente e era preciso agir com a maior brevidade possível. Tudo se resolve disse um velhinho assim bem mais sábio que os latagões. Não foi tão fácil assim, Alice também era muito forte e de corpo morto torna-se ainda mais pesada. Bom o ti Jaquim da ponte mandou-os rapidamente buscar um cadeirão à varanda dele e mandou que os gorduchos pegassem na enferma e a pusessem na cadeira. Mandou vir mais dois rapazes e os quatro carregaram Alice ribanceira abaixo. A aldeia toda se reuniu em casa de Alice. Velhos e novos, todos rezavam para que o doutor Vilegas estivesse em casa e a pudesse curar. Todos erguiam mãos e cânticos ao Senhor para que Bela Alice não morresse. A jovem sempre foi muito alegre e divertida, muito amiga de ajudar quem dela precisasse. Havia uma ceguinha na aldeia a quem Bela acendia o lume todos os dias. Ia com ela à missa. Levava-a a ver a D. Eurázia, a enfermeira. Depois passavam pela mercearia do Sr. Morgado Sines para comprarem umas frutinhas e uns quilinhos de arroz. O peixe, a carne e outros alimentos, o carniceiro Benedito encarregava-se de a fornecer. No fim do ano os filhos da ti Dalmina, emigrantes em França, lá liquidavam as contas por completo. A pobrezinha quando soube o que aconteceu recolheu à cama e nunca mais saiu de entre os seus cobertores. Pouco tempo depois tocaram a sinais: “Morreu de desgosto a Ti Dalmina”, dizia o povo. Tenho cá para mim que se lhe acabaram os dias na terra porque já tinha completado um século de primaveras.
Os quatro rapazes já tinham percorrido quinhentos metros, estavam quase a chegar à estrada dos moinhos quando resolveram colocar a cadeira de Alice na ponta da parede das silvas, para descansarem os braços. Bela Alice parecia melhor.
O sangue estancara, mas Bela Alice continuava inconsciente, e sua mãe debatia-se inconsolável, gritando de tal modo que a beleza dos caminhos, e até da aldeia, se convertia no aspecto lúgubre e soturno que a enfermidade sugeria, e todos os acompanhantes estremeciam sem reacção. Eis senão quando, Bela Alice arregala os olhos, esboça um ronco de inexactidão, e aqueles latagões deixam-na cair para o meio das silvas, onde um grande ninho de cobras fervilhava pavorosamente!
Atabalhoada com o sofrimento Maria pensava alto: - esta vereda infernal coberta de pedregulhos e de ladeiras perigosas, nem para passear burros dá quanto mais para transportar a minha filhinha doente. Enquanto o sofrimento ardia cada vez mais no peito da mãe aflita deu-se o cabo dos trabalhos... desmaiou. A muito custo, com algumas bofetadas à mistura que um curioso lhe foi dando, conseguiu acordar e arranjar coragem ajudar Alice a sair daquele maldito buraco. Não contendo as lágrimas mandou mandou que tocassem os sinos arebate pela segunda vez. Os habitantes da aldeia temiam o pior por isso não tardaram a por pés a caminho com machados e roçadoiras em punho. Não levou muito tempo e o silvedo estava limpo. O suor engrossava e escorria como fontes de água nas rosadas faces daqueles incansáveis aldeãs. Um dos irmãos de Alice, lacrimejando, cheio de medo dizia: “a minha irmã, pois, está claro... a minha irmã está morta”.
Rastejando como sombras do mal mais de cem cobras abandonaram o ninho. Só ficou uma e mirava intensamente Alice e os calmeirões que a deixaram cair.
- Milagre – Retorquiu, admirada, Dulicinha! Não foi picada. Até me parece que as cobras a protegeram das silvas. O corpo da rapariga estava inanimado mas tinha o rosto lindo como se fosse o de uma bela princesa adormecida. A última cobra mantinha-se fixa, de cabeça no ar encantada olhando para Alice. Parecia humana. Tentavam sacudi-la, mas era em vão. Foi então que um pastor e seu pai, cada um com sua corda, resolveram fazer um laço e arrastando o animal invertebrado pelo rabo e pelo pescoço. Naquele instante Alice abre os olhos e grita com uma força que todos diziam vir do outro mundo: não matem a cobra, deixem-na ir no rastro da vida.
Alice fechou de novo os olhos e foi levada aos ombros dos quatro homens até à carroça que a esperava há mais de duas horas.
Ao chegarem a casa do doutor Vilegas este administrou uma dose máxima de medicamento a Alice e concluiu que ela tinha sido vítima de uma meningite aguda muito grave. Ainda que vencesse dizia o doutor, ficaria com muitas sequelas no cérebro. A rapariga foi transportada para o hospital mais próxima que se encontrava a cinquenta quilómetros da casa do médico. A partir daquele momento Alice foi numa ambulância com acompanhamento médico. A mãe nunca deixou a cabeceira da sua filhinha. Só regressou a casa no dia seguinte com uma enfermeira para tratar todos os seus filhos do possível contagio. O médico tinha dito a Maria que a meningite é uma doença contagiosa podendo atingir todos os grupos etários.
Bela Alice esteve seis meses em coma profundo. Um dia o médico que tratava de Bela Alice chamou Maria ao seu consultório e disse-lhe:
- Senhora D.ª Maria vou mandar levar Bela Alice para sua casa ela não acordará nunca mais. Prepare a mortalha. Mande tocar os sinos e tente compreender que no céu ela terá um lugar bom à sua espera. A mãe não se conformava com a ideia do médico mandar levar a sua filhinha, ainda que moribunda, do hospital para fora. Enquanto há vida não morre a esperança dizia a pobre Maria convencida que sua filha voltaria a ser o seu braço direito.
Essa noite ela pensou para ela - Se a cobra que não queria deixar a minha filha sair do buraco das silvas a visse agora até ela chorava. A minha Bela Alice parece um anjo, rosado e linda como uma flor! Não. Não pode morrer tão jovem.
No dia seguinte os bombeiros subiam a encosta quando se deparam com uma cobra de todo o tamanho. Assustados fugiram a toda a pressa com a maca nas mãos. Depositaram Bela Alice na cama e berraram assustados até caírem sem sentidos. A cobra tinha seguido a maca desde que avistou a ambulância que lhe devolvia a sua companheira. Maria ao ver o bicho disse ao povo que não lhe tocasse. A cobra forma um salto enorme para cima da cama faz um círculo, olha Bela Alice e adormece para todo o sempre. Repentinamente, como se tudo fosse milagre ou magia, a jovem abriu mais uma vez os olhos e, ainda com voz rouca, porém de aparência feliz, asseverou:
- Esta cobra morreu para me deixar o rastro da vida!
Por esse motivo contam-se episódios lendários em muitos aspectos e terminologia.
Alice viveu até aos cento e quatro anos. Enquanto andou na terra todos os dias punha flores na campa da sua companheira. Bela Alice e a cobra eram inseparáveis, até o biberão do leite que a mãe preparava para ela mamavam juntas. Quando Bela Alice atingiu a idade de tomar conta dos irmãos continuou a alimentar a sua companheira com algum do leite que retirava dos biberões dos cinco irmãozinhos que ajudou a criar.
LENDAS (cont)
“lendas e maravilhas …OU UM POUCO DE HISTÓRIA!
A manhã já ia adiantada e um sol primaveril aquecia a terra que o orvalho nocturno regelara. Apenas o fumo que subia em espiral dos telhados de xisto das casas da aldeia de Cebola manchava o dia claro.
Àquela hora, já Ti Carlota descia o povoado, de cesto à cabeça, onde levava o almoço quentinho, a esfumar paladar, aos “obreiros” que trabalhavam lá em baixo, ao Vale de Muro, ia observando algumas terras já arroteadas, quando, ao lugar da Eira das Casas, viu, como que numa visão, uma linda senhora, de longos cabelos loiros, a pentear-se com um pente de ouro. Surpresa e tímida, salvou Ti Carlota a linda senhora, que mais lhe parecia uma princesa. Esta respondeu à saudação e inquiriu sobre o que ia no cesto. Informada, pediu à Ti Carlota que repartisse com ela parte do almoço do “obreiros”.
Não ia com pressa a Ti Carlota e, de qualquer maneira, não deixaria de dar de comer à linda senhora, como faria com qualquer pobre faminto que naquele tempo não raro se topava pelo caminho. Satisfez o pedido da linda senhora e, esta, muito agradecida, retribuiu, despejando a um canto do cesto do almoço o que tinha num saquinho, que era, nem mais, nem menos… carvão!
Ti Carlota ficou muito admirada, mas não disse nada. Despediu-se da linda senhora, salvando-a, e logo se afastou até onde não podia ser vista, atirou fora o carvão, considerando pouco asseado pô-lo no cesto junto da comida.
Reunia já o pessoal quando Ti Carlota chegou. Esta, antes de mais, quis, mesmo cansada e em alvoroço, que ouvissem a historiado seu estranho encontro. Mas o apetite dos “obreiros” não parecia deixá-los prestar a atenção devida, nem sequer crédito. Percebeu-o, a Ti Carlota, e dispôs-se a distribuir as refeições. E eis que, ao destapar o cesto, retirando uma grande toalha, deu de caras com pequenas partículas de ouro no sítio onde esteve o carvão. Foi o espanto geral!
Correram com um só, ao local onde Ti Carlota tinha deitado fora o carvão, mas dele nem vestígios; foram ao lugar da Eira das Casas, mas da linda senhora, de longos cabelos loiros, que se penteava com um pente de ouro, também não havia sinais.
Um a um, chegaram à conclusão que a Ti Carlota esteve na presença de uma moura encantada e à beira de ser rica.
ADENDA – I
Por mais de uma vez, pessoas idosas nos contaram esta lenda de há muitos anos, associando-a aos lugares mencionados, referindo sempre que no lugar da Eira das Casas, ao fundo de S. da Beira, existiu um buraco (agora tapado por um “chão”) a que ninguém conseguiu ver o fim; tendo-se metido lá um cão e tapado a abertura, o mesmo apareceu em Dornelas do Zêzere, nunca se vindo a descobrir por onde tinha saído.
ADENDA – II
A cimo do Casal de Santa Teresinha, na serra que se alonga a partir do “Picoto”, divisória das freguesias de S. Jorge da beira e Piódão, fica situado o lugar dos “Morouços”, à volta do qual existe uma história sobre um tesouro ali depositado. Foi-nos descrito como um largo espaço relvado, que teve no centro um “marco” (pedra erguida na vertical) e uma parede em círculo à volta deste, da qual não sabemos a altura e o diâmetro. Em lados opostos do largo, mantêm-se ainda dois montões de pedregulhos que, segundo nos afirmaram, não aparecem originários da superfície local.
ADENDA – III
Os “brandões”, bandoleiros identificados com o famigerado João Brandão, deixaram atrás de si variadas histórias, à sua passagem pelas aldeias da Beira interior. Diz-se que essa gente passou também por Cebola, e já ouvi contar que o primeiro habitante da Cerdeira (agora Casal de Sta Teresinha) foi um aldeão que degolou um “Brandão” que fora obrigado a hospedar em sua casa, fugindo a represálias.
Ao cimo da “laje”, lugar do casal de Sta Teresinha, em plena serra, há sinais de construções de pedra, que tanto poderão estar relacionadas com fugitivos aos saques dos “Brandões” ou ao serviço militar.
CONCLUSÃO
S. Jorge da Beira – História Zero – não é história; pretendendo tão somente, ser uma pista. História de S. Jorge terá que surgir de uma pesquisa trabalhosa e cuidada, que vá tanto quanto possível, às origens, num desvendar harmónico do passado lendário e real.
Aos leitores um chamamento ao apoio a prestar, caso a ideia germine. JOSÉ DO FETAL”
Pinheiro do meu Menino
Por Adelaide Ramos Vilela
Há uma árvore de Natal plantada no meio do presépio da igreja onde fui baptizada há quase meio século de vida à espera do meu regresso.
Este Natal apetece-me voltar para a aldeia e ajudar a arrancar, das entranhas da terra, o musgo para enfeitar o berço do nascimento do meu Menino. O Menino que está comigo nos momentos de solidão acariciando-me os pensamentos presentes das lembranças de outrora. O Menino que me segue procura comigo, em cada Natal, um pinheiro igual àquele que desejo ver em cada igreja onde entro para matar a minha saudade, até regressar.
Duas vaquinhas esguias, e de ar sereno, uma ao lado da outra, seguem também os meus passos por mundos diferentes, onde o emigrante ganha o pão que a pátria nunca lhe quis dar.
Entro, saio, adormeço, e é Natal, acordo, e é outra vez Natal: Natal com sucessos, alegrias, choros e risos, desenhados na vida que o destino me vai traçando longe da árvore do meu Menino.
- Ajuda-me, ajuda-me! Quero trepar mais depressa, para poder ver, do alto, todo o presépio iluminado!
As minhas pernas são empurradas por mão firme e, eu trepo cada vez com mais força. Sentada num galho estico uma perna, e depois outra, e enfio um pontapé nas pinhas que bloqueiam o meu caminho. Quando estou quase no alto do pinheiro, sinto que alguém me puxa pelos pés e, começo a descer, a descer, até chegar a terra firme onde me sinto um animalzinho inocente e sem folgo para bafejar o meu Menino.
Não digam a ninguém (cada vez que entra na magia da quadra natalícia) há em mim uma criança que me obriga a trepar ao pinheiro do Menino, para regressar à aldeia em pensamento e matar a minha saudade.
Os pinheiros de todos os montes, nos países onde vivi, continuam a servir-me de miradouro, aqui e agora e daqui para acolá. No Canadá escolhi um deles, e nele trepei para chorar, cantar, dançar, e ver o natal da aldeia mais além: ao longe lá na encosta da Serra do Açor. Esquecida de tudo, ao meu redor, liberto-me do medo da altura, e deixo que me avistem todos os natais da minha memória. Vejo muitos pinheiros... Debaixo de todos eles há figurinhas de todas as cores, e um Menino embrulhado num lençol dourado, rodeado por duas vaquinhas e, milhares de luzinhas, que parecem descer do Céu. Chegam as primeiras velhas da sacristia, vestidas de negro, e as jovens de véu branco na cabeça, e as mães com os filhinhos ao colo ou pela mão. Só depois entram os homens, e os rapazes que lentamente e em silêncio, sobem pela igreja acima, e vão sentar-se nos primeiros bancos da frente, perto do altar-mor. Todos rezam baixinho para adormecer o Menino que acaba de nascer à meia-noite em ponto. Ainda oiço o murmurar daquelas beatas, que baixinho vão criticando a maneira de vestir, (as mini-saias) das esbeltas raparigas que depois da missa do galo namoriscam até ao rebentar da aurora.
- «Tátá desce, estás na lua»? – Eu estava empoleirada no mais alto dos meus pensamentos, e respondi à criança que me interrogava. - Nas minhas lembranças, querida menina, há sempre pinheiros cercados de figurinhas, que atravessam céus e mares para que nos momentos vazios da vida, o Menino as coloque no sítio certo para que não me falte a companhia em terras de emigração.
Nos meus pensamentos ainda permanecem vivos os pinheiros que cortámos para fazer sombra ao Menino, e pendurar as luzes do passado para que com elas nos sintamos iluminados na procura de outras e belas lembranças vividas. Há dias em que subo de pinheiro em pinheiro. Depois, apoiada de galho em galho, deixo-me cair, e volto a trepar, na esperança de que do alto do próximo pinheiro, possa ver ainda melhor os natais da aldeia que me viu nascer –
S. Jorge da Beira.
Mais do que uma vez, cansada dos tempos que correm velozes, cada vez mais rotineiros, trepo mais alto, e num delírio desequilibrado caio dum pinheiro gigante, e a queda faz–me acordar já do outro lado do mar.
Foi preciso dar um novo salto. Desta vez não deixei que o pinheiro baloiçasse na viajem de regresso, porque até seria perigoso caso o pinheiro tombasse e me deixasse cair nalgum abismo desértico. Eu, pesada como sou, faria um buraco nas neves frias destes lados do mundo: o Canadá.
Mas a pernada vergou até à entrada da maior igreja de Montréal. Eu só queria encontrar um pinheiro igual ao do meu Menino, lá da aldeia. Reparo que nem naquela igreja canadiana, nem nas outras, havia pinheiros como os do meu Menino. E como posso eu viver nos caminhos espinhosos da emigração, sem o pinheiro do meu Menino, cujo tronco me serve de ponte entre o passado e o presente? E como será o futuro, se os galhos do pinheiro do meu Menino envelhecem, e decidem atraiçoar-me enquanto corro mundos emigrantes, levando a minha Pátria, prenhe de memórias e saudades. Não, o meu Menino Deus, o verdadeiro, não o vai deixar secar o meu pinheirinho: vai regá-lo todos os dias até que um dia eu regresse da viagem.
Olhando para o espelho do meu quarto, enfeito-me para a ceia de Natal. Dou um gritinho às crianças para que venham admirar o fato verde que acabo de estrear. Gostaria que elas e eles, tivessem um dia uma bela recordação da tatá!
Pergunto-lhes:
- Estou linda amores meus?
- Sim, mas anda brincar...
A música de Natal que uma das meninas havia trazido encantava-me. Fecho os olhos. A cama estava ali; perto de mais para dar vontade de gozar uma pequena sesta. O sono foi de pouca dura. Senti gemidos, como se fossem de lenha a rachar. A lareira crepitante convidava a uma bela ceia de Natal. Acordo? Olho para a janela. A minha rua estava toda branquinha. Um autêntico tapete branco cobria de neve toda cidade de Montreal!
- Tatá, anda! Anda! - Diz uma criança. Espreguicei-me. E quando levei dois beijos doces no rosto, senti-me feliz e pronta para voltar a ser criança.
- Trepa escadas acima, e vai depressa buscar o trenó. Queremos brincar contigo na neve.
Tal como as crianças, vou meter-me no trenó e brincar na neve:
- vamos todos fazer bonecos, bolinhas e vaquinhas. Cada uma das figurinhas irá para debaixo do pinheiro do Menino Deus, que vive no meu pensamento até que findem os meus natais na terra!