Corre o ano de 1950, Dezembro adiantado. Se bem que no céu azul sobre Cebola se não enxergue uma única nuvem que possa estorvar o brilho do Sol, à sombra das quelhas está um frio de rachar.
Como que ao desafio, as águas nos barrocos precipitam-se pelas serras abaixo à procura dos três ribeiros, que, de tão cheios que vão, só pelas pontes e pontões se deixam atravessar.
Lá longe para Nordeste vislumbra-se a majestosa Estrela vestida com o seu branco manto de neve. Ao passarmos pela ponte do Tornadouro acompanha-nos o sussurro das águas torrenciais no Ribeiro do Meio, misturado com o guinchar da gigantesca roda do lagar de azeite, que nem sequer neste dia de Natal descanso conhece. Uma leve brisa de lá nos trás o pesado cheiro a couvadas, certamente a ceia dos lagareiros.
Fumo esgueirando-se de entre as lajes de inúmeros telhados e chaminés paira sobre o povoado, sinal de que as nossas avós, mães e irmãs labutam em volta dos tachos, preparando os manjares para a Consoada. Sedutores aromas a arroz doce, a tigelada, a filhoses, a apetitosos guisados e assados deixam crescer água na boca a quem passa por esta e aquela casa.
Os nossos homes enchem as tabernas para buer um quartilho ou gozam o calor do Sol às soleiras das portas e escaleiras dos soalheiros Pombal e Rodeio.
Grande azáfama reina à Eira. Madeiros, galhos e torgas são acarretados e amontoados em cima dum enorme cepo de pinheiro. Para os muitos garotos que os acarretam é uma questão de honra, quem o maior apresenta. O António, acabado de aparecer ao cimo do Cascalhal e a assoprar como um boi debaixo da canga, solta um berro prenhe de basófias: “É malta! Aqui vai o maior de todos!” e arremessa um enorme galho de pinheiro para cima do amontoado, que entretanto já os tres metros de altura ultrapassa.
Entardeceu. Já lá vai uma porção de tempo que os sinos tocaram às Trindades, com aquelas ternas badaladas que a nossa Adelaide Vilela no seu livro Horizontes de Saudade no longínquo Canadá poeticamente recorda, “...soavam como ondas calmas do mar que vão e vêm ao fundo de mim...”.
A escuridão do crepúsculo invadiu quelhas e becos, onde nada já se enxerga. As difusas silhuetas que aqui se cruzam, só depois das saudações “Boas Festas!” ou “Boas Noites!” é que se deixam identificar em Piedades, Marias, Antónios, Alfredos. Alguns conterrâneos afirmam que se reconhecem pelo cheiro... A electricidade e com ela a iluminação pública só no ainda longínquo ano de 1959 irá chegar a este esquecido canto da Serra do Açor.
Dum janêlo ouve-se o apelo enérgico duma mãe, “Ó filha! Toca a andar daí já pra casa!”. Todos os cães da vizinhança se deitam a ladrar, como que a dar a sua sentença.
A Lua ainda não assomou por detrás da serra, mas biliões de estrelas cintilam no Firmamento, que mais parece uma monumental abóbada sustentada pelas serras.
Finalmente e debaixo de grande algazarra, bota-se fogo à Fogueira. As labaredas, acompanhadas de estalos, fumo e faíscas, rasgam a escuridão da noite, projectando fantasmagóricas sombras dos circundantes contra as paredes das casas. Todos procuram o bem-vindo calor, acotovelando-se em volta. “Arreda o cú daí, pá! Eu também me quero aquecer!”, berra um garoto para outro, tentando tomar-lhe o lugar.
Uma garrafa de jeropiga circula de mão em mão, para que o calor também venha de dentro.
Alguém scrafuncha entre as primeiras brasas à procura de sítio adequado para assar umas morcelas.
Três garotos mais graúdos pulam como uns taboucos, perigosamente perto das chamas.
Encorajadas pelos aplausos dos circundantes, atreve-se um pequeno grupo de raparigas timidamente a um canto de Natal.
Desde a Costa e Cabecinhos aos Torgais, da Abeceira e Ribeiro Souto ao Pombal e Rodeio que a luz ténue das candeias de azeite, candeeiros de petróleo e gasómetros chameja de inúmeros janêlos, atrás dos quais as nossas gentes se deliciam com a ceia melhorada.
A pobreza amarga, que em muitos destes lares infelizmente não deixa de marcar a sua presença à mesa, não impede contudo que aqui se vivam momentos felizes. O nosso Joaquim Pereira bem melhor nos recorda estes momentos, quando no seu poema Natal Especial escreve, “...Um beijo de amor não falta.”
Os sinos tocam alegres, como que aos pulos, a convidar para a Missa do Galo. Cebola em peso o convite lhes segue.
A nossa pequena, velha Igreja não conhece aquecimento, mas com o calor irradiado de tanta gente, ninguém se queixa de arreganhar. Iluminados pelas inúmeras velas e alguns gasómetros, N.Sra.das Dores, S.Jorge e S.Sebastião saúdam-nos dos seus altares.
O Presépio está grandioso. Sobre montes e barrocos artisticamente modelados com fragas e musgos, espalham-se figuras de ovelhas, pastores e reis magos voltados para o Estábulo com o Menino.
Um pequeno grupo de mulheres entoa o belo “Adeste Fidelis”. Com fervor e paixão se lhes junta o poderoso coro de todo o povo presente, transformando a nossa modesta igreja como que numa mistica catedral, plena daquela magia contagiante, que toda a alma seduz e voar deixa.
Acabado o solene acto, todos se esgalham pelas quelhas frias e cobertas pela geada, agora pálidamente iluminadas pela meia-lua lá no alto, a caminho dos seus lares. Aqui se atiram aos acepipes e guloseimas que sobraram da ceia. Os mais jovens confluem para a Eira, onde a fogueira entretanto se transformou num ardente montão de brasas a brilhar em competição com as estrelas.
Sebastião Batista