Corre o ano de 1967, fins de Junho, sábado já tardote. O Sol acaba de desaparecer lá pra trás da Portela, mas o ar morno deste dia de calor ainda paira sobre as quelhas e becos de Cebola. Um momento, por favor. Há uns anos atrás foi alterado o nome da nossa terra, sem autorização explícita da nossa juventude. O autor tem que fazer aqui uma correcção que nada lhe agrada, mas que tem de ser...: sobre as quelhas e becos de S. Jorge da Beira.

Um grupo de rapazes graúdos pula e acotovela-se em grande algazarra à volta dos matraquilhos no Clube à Tapada.  A uma das mesas junto ao bar, montes de piriscas aos pés, garrafas de "Sagres" à frente, conversam animadamente dois homens de meia idade, ou mais exactamente, eles berram um para o outro. Com olhos de carneiro mal morto e língua entaramelada pelo efeito do álcool, surge a dúvida a quem os observa, se eles entendem o que o outro diz. Mais além, debruçados sobre o tabuleiro das damas lutam concentrados dois estrategas. Noutra mesa ao lado, cercados por um monte de espectadores, procuram jogadores de "sueca" provar a sua esperteza. Mais além joga-se Dominó. Com a cabeça entalada entre os braços cruzados em cima do "Século" de anteontem, um velhote dorme e ressona numa outra mesa. Cinco raparigas modernas, estudantes de férias, conversam animadamente, bicas de café à frente, cigarros elegantemente entalados entre os dedos, numa mesa ao canto. O aparelho de rádio, flanqueado numa prateleira por garrafas de "macieira" , "licor beirão" e montes de cadáveres de moscas, grasna solitário sem que alguém lhe preste atenção. Um grupo de homens, somente homens, sentados lá fora nos bancos encostados ao Clube, louva, critica e propõe estratégias seguidas ou a seguir pelos treinadores do Benfica e Sporting e sobre a actuação do Eusébio num dos últimos jogos. O "Simca" dum emigrante desfila pela quarta vez no espaço duma hora frente ao Clube, vindo dos lados da Eira.
 
À Ponte, um garoto de dez anos, o nosso Zé da Abeceira, espera ansiosamente na estrada pela mãe, que está na cozinha próxima a ajudar nos preparativos para a boda de amanha da Florinda e do Jorge, para a qual algumas dezenas de convidados já aguçam o dente.  Para matar o tempo anda aos pontapés aos calhaus que lhe aparecem pela frente das botas. Se calhar até vai pensando nas duas ou três filhoses com que a mãe o irá de certeza absoluta brevemente presentear ou numa malgasita de arroz doce.

Enquanto isto, começa a ouvir uns estalidos estranhos e em vez dos cheirinhos sedutores vindos da cozinha chega-lhe ao nariz um cheirete a fumo. Irritado, procura localizar a origem. Com os olhos escancarados de pavor dá com as chamas já a sair pelos beirados das telhas. Como um desalmado, o Zé começa a berrar, "Fogo! Fogo! Fogo! É na casa da Tia Cardoso! Acudam depressa!" O seu berro de alarme é repetido pelo Corredouro acima, Paralelos, Amoreira, Cruz da Rua e alcança segundos depois o nosso sineiro. Este, sentado na cozinha a cear com a família, ouve o alarme. Numa fracção de segundo alavanta-se da mesa, empurra com o calcanhar o mocho em que estava sentado com tal ímpeto pra trás que este vai bater na panela com o caldo verde  em cima da "chapa". Enquanto o mocho e panela ainda rolam pela cozinha fora, já o sineiro desandou porta fora direito aos sinos. Chegado à torre sineira, sobe pelas escadas aos pulos sobre quatro e cinco degraus, atira a camisa para um canto, agarra nas cordas dos badalos e desencadeia o inconfundível, furioso ritmo infernal que põe a aldeia em estado de sitio. No Clube à Tapada, alguém aparece à porta e berra pra dentro, "po---!, Sois moucos ou quê!? Não estais a ouvir os sinos a tocar a rebate!? A casa da Tia Cardoso está a arder!" Em zero virgula nada de segundos interrompem-se animadas conversas e jogos já quase ganhos. Quartilhos de vinho, garrafas de cerveja e bicas de café deixam-se por beber ao abandono. Até os rapazes não hesitam um momento em se separar dos matraquilhos. O velhote dorminhoco levanta a cabeça e pergunta atabalhoado, "o quê? Que é que foi? Onde?", mas ninguém lhe responde. Todos disparam prá rua com uma única meta na mente: apagar esse raio do fogo! Gente em correria vinda do Pombal, da Costa, da Tapada, do Rodeio, do Ribeiro Souto conflui aos Paralelos, transformando-se aqui numa torrente arrastadora de solidariedade que só pára à Ponte. Gentes dos Torgais, que foram dos primeiros a chegar, já montaram uma cadeia de mãos a passarem baldes, alguidares, panelas e sabe-se lá mais o quê com água na direcção do fogo. A avalanche humana acabada de chegar entala-se de imediato na fileira já montada, transformando-a numa majestosa cadeia cerrada de mais de meio kilómetro, que vai até à próxima fonte e ribeiros. Labaredas e fumo esgueiram-se por entre as telhas partidas. Um homem que tinha tomado o comando berra, "vamos atacar isto pelo lado da serra!" Sem hesitar um segundo, agocham vinte ou trinta voluntários pela íngreme encosta acima, tomam posição e passam os baldes aos cinco homens, que dum sitio estratégico atrás da casa os despejam sem cessar para cima das chamas.

Passados cerca de quinze minutos vem o berro de triunfo, "chega! já não enxergo chamas nenhumas!"   A boa nova espalha-se pela longa fileira de braços a abanar. A ansiedade até agora estampada nos rostos desaparece e dá lugar à satisfação de quem está ciente de ter cumprido o seu dever. A viúva do Ti. Cardoso, ainda no seu traje de luto, que irá certamente trazer pelo resto da vida, lança os olhos molhados de lágrimas para os restos da sua casa. No seu rosto espelha-se a dor e o desespero de quem acaba de ver o trabalho duma vida inteira esfumar-se em instantes. Um garoto de seis anos, o nosso Vitor, olha aterrado e paralisado pela brutalidade com que o fogo acaba de destruir a casa onde tantos momentos felizes passou com a avó. Passada uma meia hora desde a extinção do fogo, chega o carro-tanque dos bombeiros. Perante o feito consumado diz um destes para as nossas gentes, "bom trabalho o deste povo! Nós não fazíamos melhor!".