Os sinos de Cebola - 1
Corre o ano de 1943, princípios de Julho. A maldita guerra nao há meio de acabar com as suas devastações e tormentos por essa Europa fora. No entanto, a canalhada a quem ela se deve, vai sendo ultimamente dizimada e enxotada pelos russos, alimentando-nos a esperança de que em breve acabará. A alguns dos nossos conterrâneos, os volframistas, é que isto lhes nada agrada, pois receiam a perda dos fregueses. O "volfro" nunca tanto lucro deu aos seus possuidores como hoje. Os ingleses, a quem Salazar concedera o direito de exploração na Panasqueira e arredores, cobrem aqui legalmente as suas necessidades. Aos alemães resta-lhes apenas o contrabando, como única possibilidade de adquirirem o cobiçado minério. Formigueiros de gente scrafuncham nos barrocos e ribeiras à volta de Cebola à procura do valioso volfro, indispensável no endurecimento de ligas metálicas para a fabricação de armas. O pouco que encontram vendem aos volframistas, que por sua vez o vendem com gordo lucro aos agentes alemães. Um destes coordena o negócio a partir do Sobral, onde tem o seu poiso. É um gajo alto, forte, rosto incapaz de sorrir, cabelo cor da palha e paletó de cabedal quase até aos pés. Com o olho azul sempre desconfiado, observa tudo e todos à sua volta, certamente receoso de que qualquer agente inglês lhe queira pregar alguma. Um dos nossos carvoeiros que vai d´amiúde para as bandas do Sobral, afirma que já viu por lá na serra um gajo suspeito armado de binóculos e aparência de inglês: alto, cabeça quadrada, bochechas vermelhas e sempre com vestimenta a preceito". E acrescenta com rosto ensombrado, "e se calhar traz uma pistola debaixo do casaquinho fino e ronda por aí à espera de apanhar pelas costas o alemão desprevenido".
Um grupo de garotos, dos quatro aos nove anos de idade, conversa animadamente à sombra dum palheiro ao Rodeio, tentando explicar uns aos outros aquilo que entendem por guerra. O Casimiro, de três anos e meio de idade explica com ar de sabichão, "grandes maltas de gajos armados de espingardas e pistolas, andam como uns taboucos aos tiros uns aos outros lá longe pra trás da serra e...". O António, o mais velho do grupo e que já anda na segunda classe, interrompe-o com ar de mestre, "essas maltas que tu estás prái a contar chamam-se exércitos, pá! E são acompanhados por caminhêtas com canhoes à frente e até por árrplanos que botam bombas pra riba dos inimigos!" O mais jovem do grupo, o João, solta um "ena pá!" de espanto e, inquieto como sempre com o traseiro a escorregar práqui e práli, acrescenta "e os que vão ganhar são os nossos!" Um velhote vergado pelo reumático, sempre bem informado sobre o que se passa lá pra trás da serra e que até sabe ler o jornal, passa nas calmas a caminho da Capela, ouve os garotos e mete-se na conversa, tentando utilizar-se da sua linguagem infantil, "não...não... rapaz! os portugueses nao andam nesta guerra. Quem a começou foram uns gajos muito chatos que andam praí a gabar-se pertencer a uma "raça eleita", matando outros que dizem pertencer a um "povo eleito". E como isso lhes não chegasse, meteram-se ainda com os países vizinhos, mas estes andam agora a dar-lhes nos cornos e a ensinar-lhes como se devem portar." A versão politica da guerra não satisfaz lá muito bem as fantasias dos garotos, que começam a debandar um atrás do outro, deixando o velhote sozinho com a sua sabedoria.
São três horas da madrugada. Está frescote. A meia lua vai alta, lançando sobre Cebola adormecida a sua pálida claridade, como um véu de noiva estendido sobre o casario. A luz ténue e tremulante das candeias de azeite e candeeiros a petróleo escapa já aqui e além dum janêlo, sinal de que um e outro mineiro se apronta para abalar para o seu turno na mina. Aqui e além ladra um cão que sofre de insónias. Os galos e a nossa gente ainda dormem a sono solto. Na sua cama de ferro com colchão de palha e penico debaixo, alguém sonha talvez que acaba de descobrir num barroco um montão de volfro, que lhe irá trazer a fartura de que a família com um rebanho de filhos bem necessita.
De alguém ao Corredouro que tinha ido às oliveiras "dar de corpo", veio o primeiro grito de alarme, "a Guarda Republicana anda atrás da nossa gente pelo Monte Carvalheiro!" Este berro é transmitido dum janêlo para outro e arranca segundos depois o nosso sineiro do sono. Este salta da cama, agarra nas calcas e botas, vai vestindo-as aos pulos pelo caminho e desata a correr para os seus sinos. De tronco nu, as cordas dos badalos enroladas nas mãos, braços estendidos para o sino de Leste e para o sino do Norte, arranca-lhes aquele furioso ritmo único, desenfreado, como que aos trambolhões, paralisante primeiro, alarmante depois. Todos em Cebola, desde netos a avós, sabem muito bem que este toque denuncia desgraça para a nossa terra. Dezenas e dezenas de anos mais tarde, igual se os jovens de então hoje vivem em S.Jorge da Beira, Belfort, Vancouver, São Paulo, Düsseldorf, este apelo lancinante dos sinos ficou-lhes para sempre gravado no fundo da memória. O povo inteiro pula da cama, e dos janêlos escancarados assomam cabeças a perguntar, "Onde é?". A pergunta não precisa de ser feita pois o berro em versão curta, "Guarda! Monte Carvalheiro!" ecoa por todas as quelhas e becos de Cebola. Do Pombal, do Rodeio, do Terreiro, da Amoreira, da Costa, da Eira, dos Torgais correm montes de gente exaltada em direcção ao Adro, o sitio donde se pode observar melhor a serra em frente. Do cimo da Abeceira chegam os gritos aflitos das nossas mulheres a fugir, misturados com tiros de espingardas e ordens berradas por guardas. A maioria dos que de noite procuram o volfro nos barrocos é constituída pelas nossas mulheres. Os homens labutam nas profundezas da serra para a Beral-Tin ou descansam em casa antes de ir para o próximo turno. No Adro, a multidão berra e gesticula, os sinos não deixam de badalar lá em cima na torre, das casas em volta chegam os choros de crianças arrancadas ao sono, os cães correm e ladram assanhados por entre as oliveiras e chaes em redor. Uma viúva grita, "ai Nossa Senhora! Eles andam a matar a nossa gente!" Um homem de meia idade, caçador apaixonado que sabe lidar com espingardas e conhecido na terra pela serenidade que em qualquer situação sempre demonstra, berra, "não te aflijas vizinha! Não vês como o lume dos tiros vai pró ar?! Além disso, quem comanda a Guarda é o Tenente que só deixa atirar para fazer medo!" Desde há algum tempo que corre em Cebola uma história sobre este oficial, filho duma modesta família da região e que parece ser um tipo porreiro. Conta-se que depois duma acção semelhante, ele ter dado um pontapé no cú a um dos seus guardas, só por este ter disparado demasiado baixo, berrando-lhe, "a porca de vida destes pobres diabos bem lhes chega, para por cima os ainda andarmos a matar! Aquele que no futuro acertar em alguém desta gente pode estar certo que irá apanhar uma valente sova!" O velhote que no dia anterior tinha pegado conversa com os garotos, berra, "são assim esses filhos da p--- lá em cima no governo! Gabam-se de ter preservado Portugal da guerra na Europa mas pelo outro lado declaram esta ao seu próprio povo! Uma cambada de saca--- é que eles são!" Alguém no Adro, ao lançar o olhar para a torre sineira, não pode deixar de dar um desabafo sobre a cena surrealista que vê à fraca luz do luar, "olhai pró sineiro lá em cima na torre! Parece um fantasma a abanar os sinos!" A este corre o suor em caudal de todos os poros, com as mãos roxas a doer pelo puxar das cordas dos badalos. As forças já o vão abandonando e o ritmo já não é tão furioso como há cerca de meia hora, quando se deitou a eles. "Agora chega!", diz ele para consigo e senta-se esgotado ao lado dos sinos, não antes de passar carinhosamente com a mão por cima de cada um deles, como quem acarinha os seus cavalos depois duma corrida ganha. Uma hora depois de na serra a perseguição ter terminado e o derradeiro dos fugitivos ter chegado ao Povo, sabe-se que não há feridos a lamentar, excepto uma mulher com um pé desengonçado, uma outra com um braço partido por ter caído num balouco e muitas outras com pernas esgadanhadas pelas carquejas e giestas quando fugiam. Além disto, dois dos nossos poucos homens que lá andavam foram apanhados pela Guarda, que os levou presos.
Intrementes o Adro vai-se despovoando e as gentes inundam as quelhas e tabernas, onde em grande algazarra se comentam as aflições que o "saltipilha" consigo trás. Ainda na serra a perseguição não tinha terminado, já os taberneiros sabiamente soltavam os cravelhos das suas portas e escancaravam estas para o povo poder "matar o bicho". Na taberna Cruz da rua, numa mão um copo de vinho acabado de scarrapachêr, na outra um cigarro "Definitivos", um mineiro comenta com sarcasmo, "a única coisa que vai acontecer aos presos é que irão pagar uma valente multa e levar um par de lambadas, que sobretudo a um deles vão fazer bem. Fica a saber como a mulher dele se sente quando é ele próprio a dar-lhas!...", sublinhando o dito com uma cuspidela para o chão.
Óspois de recuperar o fôlego, o nosso grande sineiro arrasta-se para casa e cai estafado na cama. Ninguém lhe agradece a sua grandiosa actuação. Ele também se não importa por isso, se bem que a mulher lhe tivesse dito numa ocasião semelhante, " ó home! O nosso povo bem te podia agradecer este serviço fora do normal com uns litros de azeite e uns alqueires de milho à parte!". Como todos sabemos, em Cebola não é em dinheiro que se paga o serviço ao sineiro, ao barbeiro-enfermeiro ou ao padre. Paga-se com os produtos da terra como azeite, milho, vinho, chouriços, presuntos, batatas ou outros.
Vinde daí desses tempos passados, para os dias de hoje, 2011, princípios de Maio! Todos nós por esse mundo fora espalhados, andamos chateados e envergonhados pelo trabalho rasca com que os nossos políticos economistas nos presentearam. Os nossos governantes de hoje deveriam ser assim remunerados como nesses passados tempos por uma temporada. Depois de terem aprendido a contar com presuntos e chouriços, poderiam talvez então contar melhor com os euros, evitando o vergonhoso descalabro das nossas finanças!
Nota: o vocabulário de antao fui buscá-lo da nossa "cebola.net-a nao esquecer", com contribuicoes do sérgio, delfina e outros e alguns ainda na minha memória.