publicado:17/12/2008

 

(XI)

PONTOS DE CONTOS (2)

 

Pois é!...

 

Mas isso era o nosso ponto de vista, e o deles? Também o tinham, claro, e não nos era nada favorável. Milheiros de vezes, no trabalho, éramos confrontados com hipotéticos e duvidosos descuidos dos nossos avoengos, sempre improváveis, por certo inventados ou rebuscados em outros lugares, de outras gentes, por isso injustos, mas que eles não se coibiam de trazer à colação, tendo subjacente, unicamente, como vector director, o angelino prazer de nos fazerem pirraça. Depois, ou até antes, também nós, provocatoriamente, com calculada, manhosa e inocente ingenuidade, gostando da liça, motejávamos com as que sabíamos sobre eles, ou a eles atribuídas porque no momento era o que mais nos convinha; um ciclo vicioso de paleio barato que nunca era tomado a sério, pelo que a facécia – nunca uma guerra! – até tinha a sua graça.

Destarte…

Contavam eles, por exemplo, que, certa vez, quando inauguraram a primeira estrada de terra batida das Minas para Cebola – vá lá saber-se em que data… –, antes de chegarem as entidades com os seus espadas último modelo, ou talvez apenas um desfile de carroças e carros de bois em substituição dos luxuosos e espampanantes rolls royces, pontiacs e Cadilacs, surgiu um homem como se fosse o batedor abrindo caminho para a comitiva oficial. Vinha montado na sua bicicleta – uma pasteleira todo terreno daquela época, limpa e pintada de novo com as cores da bandeira nacional; com equilíbrio perfeito e estilo Jackes Anquetil, quase deitado, desfez a curva para a recta da ponte, logo sprintando e chegando mesmo a fazer o cavalinho; ao ver-se a habilidade do artista, exímio em cima das duas rodas, pairou a ideia de que se aproximava algum circo!

E então, de cabeças levantadas e mirones bem concentrados na curva, quando todos já esperavam que ali aparecesse, em traje de rigor, uma fanfarra de bombos, pandeiretas e cornetas, precedendo um alegre e aguerrido cortejo de macacos, leões e elefantes, tratadores e domadores, vistosas e apelativas girls, palhaços, comediantes e ilusionistas, acrobatas, trapezistas e equilibristas, eis que, inopinadamente, para espanto geral, do meio do público saiu uma veneranda decavó que, não se contendo, e como que a rogar clemência ao Divino, levantou os braços para o céu, olhou o infinito, persignou-se… e exclamou:

– Credo! Jesus! Maria! Estamos no fim do mundo… está para chegar o Juízo Final! Onde é que já se viu um homem montado nuns óculos!?

Óculos… óculos…

Outra vez, quando um ourives terá vendido um rico cordão de ouro a uma sortuda do garimpo, esta, no acto do pagamento, ter-se-á lembrado que nesse momento não tinha o dinheiro certo disponível, faltando 100 escudos para a conta ficar saldada. O ourives, que conhecia bem toda a gente e mais quem tinha haveres e dinheiro, obeso de simpatia, apanágio indispensável na difícil arte de bem comerciar, tratou logo de a pôr à vontade dizendo as coisas do costume, aquilo que se impõe em tais ocasiões. Que isso não tinha importância, que ficasse descansada, que pagaria só para o mês seguinte ou quando melhor lhe calhasse, etc., apenas queria que escrevesse o valor do débito num papel qualquer.

A mulher, encantada, e logo pronta para fazer uso dos conhecimentos adquiridos na primária, ademais vendo ali ensejo para mostrar que um diploma é um diploma ainda que da 3ª classe, de que poucas nesse tempo se podiam gabar, pegou num papelucho e, com teatral destreza, escreveu: Devo ao senhor ourives sem escudos. O ourives pegou no papel, mirou-o, remirou-o e, sorrindo para não parecer inconveniente, foi dizendo em jeito de brincadeira: “Ora a senhora … não quer dizer que nada me deve, pois não? Olhe que 100 escreve-se com um c. Sem é zero; é nada; é coisa nenhuma!...”

– Pois… tem razão, snhô ourives – apressou-se a mulher –, desculpe, é que me esqueci dos óculos…

Com óculos ou sem óculos…

…tínhamos de aturar a rábula, chistosa e irónica, bem gostosa aliás, de um homem dito de Cebola chamado João, quem sabe se descendente do lendário Don Juan, ou simples aspirante a Casanova enformado em alvos seixos e cebolas da própria cor, que certo dia foi a julgamento, não sendo, contudo, explicado pelos contadores se a sessão terá ocorrido no tribunal de Coimbra, Arganil, Fundão ou Covilhã, acusado de um pesado crime por ter prometido a mão a uma moça supostamente chamada Ladeira Cartagena e depois casado com outra de terra vizinha.

O juiz era do Minho ou de lá perto (era um homem do norte, carago!); tinha fama de firmeza nas decisões e era tido como justo e clarividente na aplicação das sentenças, mas também de cortês, bonacheirão e divertido, e quando convidou a depor uma testemunha de acusação que por acaso era padeira de distribuição ou venda porta a porta, esta terá feito a sua declaração com discurso na ponta da língua, desde há muito pensado, treinado, preparado: “

- É tão verdade, senhor juiz – disse, sem hesitação – que a menina Ladeira estava à porta da sua casa a comprar-me um pão e já não mo comprou por ter desmaiado quando uma amiga lhe disse que o senhor João se tinha casado com outra daquela terra ao pé.

O juiz tirou os óculos; encarou-a calma e fixamente; delongou os olhos no ansioso público, na queixosa, no réu e em todos os oficiais e oficiosos elementos que compunham a audiência; cofiando a barbicha, aproveitou o ensejo para disfarçar um ligeiro pigarrear desobstruindo a traqueia, e, quando já todos esperavam que iria haver segundas núpcias, com voz limpa e bem timbrada, calando o sacramental silêncio, desferiu:

– Ora balha-nos Daus, quando vem uma desgraça nunca fica só por ali – já não bastava a menina Ladeira não receber o senhor Joon, também a senhora padeira não vendeu o seu poon”.

E voltou a pôr os óculos!

Conto estas pequenas estórias à guisa de divertimento. Em pontos de contos (1) escrevi algumas (poucas, atendendo ao rol) de nós sobre os vizinhos; desta vez, apenas uma amostra dos vizinhos sobre nós; fecharei, quando para isso tiver disposição e me for consentida, a trilogia com as nossas de nós, mas essas acontecidas realmente, participadas por mim ou vistas por mim, ou contadas por amigos conterrâneos que as presenciaram ou que outros lhes contaram. Mais, muitas mais, ficarão nas gavetas da memória de muita gente.

E, quer umas quer outras são todas de lá, do nosso viver colectivo; e eram todas contadas por gente antiga ou do tempo em que por lá andava. Tenho, assim, pois, consciência de que não sou o dono do exclusivo; nem de perto; sei também, por isso, que já todos as sabiam; as outras que não conto também, mas creio que nunca as terão visto escritas.

Mas, a sério – e agora bué a sério –, bem sei que, nos tempos que correm,  não parece que haja pessoas de comportamento normal que, honestamente, se importem muito com o que foi, como terá sido, em Cebola e noutros lugares, o viver e as vicissitudes dos antepassados, ainda que, aqui e além, entre pessoas mais sensíveis ou mais arreigadas à ancestralidade parental, possa haver condescendente curiosidade, conquanto vestida de natural e indisfarçável sobranceria, para aceitar e compreender o que lhes fora transmitido como certo pelos pais e avós que as terão experiênciado, pelos parentes cronologicamente mais próximos ou mais afastados ou tão-só por decanos conterrâneos que neste site e em outros lugares, com imagens e palavras, embora inevitavelmente impregnadas de eufemismos e subjetividades sempre suspeitas, que os podem conduzir ao ceticismo, mesmo desinteresse, e com total, legítima e justificada razão.

Óculos …

Não usava, mas a partir deste mês passei a usar, com lentes progressivas, embora, felizmente, de baixa graduação – talvez fosse isso (a novidade, a custosa adaptação… o preço…) que me levou a seleccionar estas coisas dos óculos…vá lá saber-se...

 

Boas Festas

 

Constantino Braz Figueiredo